cuidado
p. decidiu adotar uma gatinha
a. e f. estão exultantes
não saem mais da casa dele
tento hipóteses paranoicas
mas depois me rendo
ao que já sei:
apesar de tudo
ele sempre gostou de cuidar
detox
faço um gesto
fingindo um microfone
diante da minha irmã
ela ri
eu pergunto
o que você espera
do futuro?
ela continua rindo
nunca fiz planos
e olha só
ela diz
feliz da vida
que tem agora
deixo pra lá
o que estou pensando
aceito quando
ela pergunta
se eu quero um chá
detox
filho
passo dois dias
quase sem escrever
para a.
ele também quase
não escreve
não sei onde
ele está
eu estou longe
uma distância nova
que aprendo
com os filmes
e os amigos
de repente
chega compacta
uma mensagem
"oi mãe
acordei com o gato
tossindo aqui"
de longe
nos unimos
na preocupação
por esse ser
que os dois
brincamos
de chamar
de filho
foram dias difíceis
não pensei nisso
mas agora penso:
poderia ser o fim
deste boyhood
o momento do corte
do ponto final
não me lembro
quando parei
de pontuar os textos
pode ser que eu sonhasse
com uma coisa
que nunca acaba
um corte
que gera
outro corte
uma cena final
que é um recomeço
foram dias
de separação
f. está mais alto que a.
a. tem aparecido
pouco por aqui
ontem fomos os três
tomar um sorvete
na volta a. se queixou
de que estava cansado
de andar:
me carrega
disse ao irmão
rimos muito enquanto
o mais novo andou
com o mais velho
nas costas
depois continuamos
andando
como se nada
tivesse acontecido
o pai dele
f. me pede
pra assinar
de novo o mubi
porque ele quer ver
"aftersun"
o primeiro cartão
não passa
o segundo também
não vai
tento pelo celular
até conseguir
no dia seguinte
pergunto se ele gostou
só quando ele me diz
que chorou
é que a ficha cai:
lembro
que lembrei
o tempo todo de p.
e que também
chorei
boas festas
se alguém próximo
ou não tão próximo
morre
meu pai logo
começa a ronda
dos telefonemas
para aqueles
próximos ou não tão
próximos
de quem ele não quer
deixar
de se despedir
acho que já
escrevi isto:
minha casa são
meus filhos
geração
a. tem um amigo
de 32 anos
ter um amigo
de 32 anos
é como ter um amiga
de noventa e três
ele é de outra geração
entende?
escrevo logo
com medo
de que depois
não faça
mais sentido
ainda não
sei direito
pode ser que sim
pode ser que não
hoje de manhã mesmo
falamos j. e eu
sobre a morte
sobre a mãe dele
tudo com aquela
superficialidade
de quem não sabe
ele sabe
mas a gente esquece
desconfio de quem
consegue
escrever mesmo assim
mas se não fizer
mais sentido
então para que
tantas letras
em tantos lugares
como este
onde talvez
não consiga
mais estar
algum dia
conseguirei traduzir
"el corazón
del daño"?
conseguirei traduzir
"se vive
y se traduce"?
os dois falam
do luto e eu começo
a calcular páginas
para em todo caso
cobrir os dias
com palavras
que não são minhas
performance
mãe
tem alguma chance
de que o público
saiba que você
é minha mãe?
collected poems
ele vem
numa visita
meio inesperada
vem todo
de preto
desleixado
decidido
quer conhecer
a casa nova
ele vem
quer vir
ele pede
eu deixo
não esperava
com a namorada
eles vêm
ela falante
ele calado
quando fala
ele pede
o volume
dos collected poems
do allen ginsberg
um livro vermelho
que eu sei
exatamente
onde está
apesar do caos
da mudança
um livro
que é dele
um livro
que apesar
da minha falta
de memória
sei exatamente
quando e onde
ele comprou
vou até ele
rápido
pego na estante
e entrego
como se essa
rapidez
provasse algo
não sei bem
o quê
escrevo no bloco de notas do celular:
"ficar mais próxima dos"
e o aparelho completa
"meninos"
pra depois
a amiga de a.
que dormiu aqui em casa
me pergunta se pode
tomar um banho
digo que sim e busco
uma toalha pra ela
volto ao meu lugar
de trabalho
hoje é domingo
tenho que escrever
antes que a semana
comece a se acelerar
não isto aqui
isto nunca precisa
ser escrito
mas é que ela
liga o chuveiro
e junto com ele
uma música no celular
penso que é
uma ideia ótima
e que eu deveria
um dia experimentar
não precisa ser hoje
agora que já escrevi
pode ficar pra depois
isso mesmo
ver a paisagem de cima
é o que sinto quando
sento à beira da cama
do meu irmão pra jogar
papo fora e ele me conta
que resolveu estudar música
conto das minhas dificuldades
e ele ri como sempre faz
quando acha que exagero
ele não pensou em mim
mas há algo que atravessa
o tempo e o espaço
uma conexão com alguém
que não poderia ser
mais diferente de mim
e que de repente pensa
que a música pode ser
aquilo que faça ver
a paisagem de cima
um pouco acima ao menos
da algaravia do dia
fico à beira da cama
olhando pra ele
que ainda não sabe
qual instrumento mas
quem sabe piano, né?
piano, é, como eu
é, claro, isso mesmo
que bom que eu te contei
me fez ver que é isso mesmo
ultimamente tenho a sensação
de que os aviões pousam mais
devagar
talvez também isso tenha
se desacelerado na pandemia
ao aterrissarmos em tucumán
tocamos o chão
em câmara lenta
a até os aplausos demoraram
a chegar
faz sentido que os aplausos
tenham voltado neste momento
já meu medo de voar só podia
mesmo sumir
assim como veio em algum
momento do passado
quando o chão
parecia um lugar seguro
um amor feliz
ele ainda vem aqui em casa
e se senta no sofá como
se fosse dele porque um dia
foi e é difícil pra ele
entender que já não é mais
nesse dia que agora volta
ele se sentou no sofá e disse:
"não leio mais poesia"
e eu perguntei se ele dizia
isso só pra me irritar
então eu fui até o quarto
peguei "um amor feliz"
e li pra ele estes versos:
"dizem/ que o primeiro amor
é o mais importante/
isso é muito românico/
mas não é o meu caso"
só agora que o dia volta
eu entendo que era verdade
e que ele estava sofrendo
só não saberia dizer
se szymborska ajudou
saussureana
a. atravessa a sala
atrás de onde eu estou
revisando a tradução
do "livro de tamar"
eu digo "filho" sabendo
que é ele e não f.
não me virei mas sei
que é ele pelo jeito
de andar ou pela respiração
ou sei lá por quê
mas eu sei
sei também que "filho"
neste caso tem
um referente que é ele
e não o outro
mas eles nunca sabem
e então me dizem:
você tem dois filhos
eu digo que eu sei
mas a palavra "filho"
gera na minha cabeça
duas imagens e a cada
vez é uma que aparece
e não se confunde
com a outra
não sei o que saussure
diria sobre isto
em todo caso
por enquanto
a confusão ainda
nos faz rir juntos
em dias como este
em dias como este
eu me confundo
será um estribilho?
eu me confundo
e me impressiona
não poder te perguntar
ainda que é claro
eu não teria feito isso
porque não era assim
que funcionava
a morte distorce
e eu me confundo
em dias como este
a três quarteirões
da tua casa
recém-chegada
vejo avós e netes
por toda parte
não sei se xs vejo
porque lembro de você
ou é o contrário
eu me lembro
enquanto vivo
disse varda
naquele filme
que nós duas adoramos
achei estranho
quando um amigo disse
que para ele
você era um mistério
não vejo como
você o confundiria
será que perdi algo?
tua clareza
era desconcertante
talvez isso fosse
misterioso para ele
te vejo passar
em outras mulheres
me vejo refletida
enquanto escrevo
agora tem certas coisas
que são uma citação
escrever no café
buscar estribilhos
falar da morte
ou não conseguir
mando uma mensagem
para o mauro
para dizer
que estou aqui
penso que o conforto
está nesses recados
que não se confundem
com a literatura
e no entanto
e no entanto
também me conforta
em dias como este
buscar um estribilho
para você
acordei cedo pra traduzir
o livro das moças da tamara
e eis que não sei se em português
a sentença de divórcio
é a sentencia de divorcio
vou ao google que me oferece
páginas e mais páginas
de tudo o que você precisa
saber sobre separação e divórcio
é claro que isto é sobre ela
e no entanto e no entanto
já se passou uma hora
e eu ainda não sei o que é
a sentencia de divorcio
que chegou pra anne carson
pelo correio e quem sabe
pra ela também mas não
chegou pra mim porque
eu sequer pedi o meu
embora ao que parece
tudo seja muito simples
se há consenso entre as partes
eu me pergunto qual parte
de mim ainda não conseguiu
perguntar pra ele se afinal
não estaria na hora dessa
separação quatro anos
depois da outra que parecia
muito mais difícil
e no entanto e no entanto
eu volto pras moças
da tamara sem respostas
e sublinho a sentencia
pra continuar
a busca
depois
fran
a fran não gostou de mim
de cara porque como fez
questão de dizer logo que
soube meu nome tem medo
de pombas e foi assim que
se despediu aos gritos de
una paloma, una paloma!
sem deixar que eu a beijasse
mas tivemos nossos momentos
e foram tão lindos como
o seu sorriso inesperado
quando sozinhas no quarto
lhe disse que tinha dois filhos
e ela me perguntou onde
estavam e eu disse que com
o pai e ela quis saber
então quem era o homem da
sala e concluiu que eu tinha
dois namorados e sorriu
antes da despedida ela
me deixou ver o que estava
fazendo com o caderninho
que lhe demos de presente:
um diário de cachorros dela
e dos outros para não
esquecer ela repetiu
para no olvidar
a. quer ir embora
do brasil
pelo telefone
p. me conta o que eu
já sei
e chora
pelo caminho do brasil
não dá para avançar
tudo já foi dito
ou não mas
o que não foi
dito foi porque
não deu
então eu digo:
isso tem a ver
com a gente
o que é o mesmo
que dizer
isso tem a ver com
o brasil
eu sei
ele diz
eternidade
mando pra f.
a foto de uma pomba
no sol
que ele tirou
há dois anos
em buenos aires
brincando que era eu
ele fica surpreso
e animado:
"agora a pomba
vai ficar eternizada
nesta mensagem"
de tempos em tempos
rearrumo meus livros
às vezes há lindas
surpresas às vezes
bastante vergonha
e escrevo em um
caderno de borboletas
o nome do livro
que podia estar
só que não está
porque nunca tive
porque perdi, porque
emprestei e esqueci
e pode acontecer
como f. sabe
que em alguma outra
rearrumação
eu tenha mudado
de lugar e a falta
seja só de
memória mesmo
aí eu anoto
também no caderno
com borboletas
os critérios de
rearrumação
e pode acontecer
de esquecer o critério
do critério e por que
fazia sentido juntar
os livros que me fazem
escrever se afinal
quem é que sabe
ou por que poesia
separada da prosa
ou então por que
espanhol separado
do português
se eu nunca separo
nada de nada
mas como f.
diz é bom tentar
sínteses
mãe
ou você compra livros
que já tem
ou que não vai ler
mãe
ou você escreve sobre
o roland barthes
ou sobre você
a cada dia
eles põem à prova
o que eu faço
o que eu digo
filhos alquímicos
testando novas
composições
achei que não
fosse gostar
mas até que
gosto
mãe
"estou me sentindo
muito esquisita"
é uma frase
icônica
sua
faz algum tempo
que ele me conta
sonhos pelo telefone
ele me diz: essa noite
eu sonhei e ele conta
o que antes talvez
contasse pra sua analista
e que com a morte dela
precisa de outras orelhas
penso no telefone
sem fio entre a orelha
dele e a minha
e a de seus pacientes
um inconsciente coletivo
contando o incontável
como a mulher
que deixou o hospital
e saiu andando
pra morrer na rua
que nem personagem
do fellini
não tem nada pra
interpretar só escutar
dizer estou
te escutando sim
pode falar
15 anos
estou na rua
t. me manda uma mensagem:
é hoje, né?
no mesmo instante
o chão vacila
e me desequilibro
temo logo
uma doença incurável
ou talvez seja culpa
do uso da máscara
é só o tempo mesmo
que passa rápido
demais
para a mayra
o que é que importa?
que a. acordou com 37,7 de febre
e me corta a respiração pensar
que ele pode estar com covid
ou que ele esteja muito magro
desde que teve apendicite e eu me culpe
por não conseguir convencê-lo a ter
uma alimentação saudável
ou que eu não saiba direito o que é
uma alimentação saudável
porque não sei direito de onde vem
a comida que eu como?
ou que o atual governo queira acabar
com a natureza e com a cultura
ou que f. ainda ria de todas as minhas
piadas e a. não ria de nenhuma
que eles são o sol da minha vida
e isso seja uma metáfora
talvez um pouco gasta
mas não menos eficaz
ou que este jeito de escrever seja
viciante e que eu tenha me viciado
depois de traduzir durante
os primeiros meses da quarentena
um livro de margo glantz
chamado "y por mirarlo todo, nada veía"?
ou que eu não consiga me separar
de nada e de ninguém
ou que isso não seja totalmente verdade
e que eu tenha muita dificuldade
de dizer o que é verdade e o que não é
e que talvez por isso eu diga muito
"talvez", "um pouco" e frequentemente
não complete as frases
o que irrita muito meus filhos
e meu namorado
ou que eu gostaria de chamar
meu namorado de "meu homem"
mas que isso talvez seja cafona
e que eu tenha dito a muitas pessoas
que estou escrevendo um conto erótico
e que agora já não consigo escrevê-lo
porque o brasil acaba com a libido da gente
ou que a gente precise resistir a isso
com todas as nossas forças
ou que a palavra "resistência" esteja
muito gasta e ainda assim seja
necessário usá-la?
ou que minhas amigas me perguntem
por whatsapp se minha dor de cabeça
passou e isso me faça chorar
ou que eu chore muito ultimamente
e que chorar não adianta nada
que as pessoas deveriam se juntar
por zoom para chorar juntas
mas que talvez essa não seja uma boa
e seja muito melhor a ideia de uma amiga
de fazer "coreografias de apartamento"
que ela posta no instagram
que eu agora use o instagram
mas não saiba direito como
e prefira o twitter como m.g.
que tem 90 anos e quase 50000 seguidores
e que eu só tenha 1 seguidora
ou que uma amiga tenha dito
que o twitter é o melhor lugar
para se divertir em tempos de crise
mas isso foi antes do bolsonaro?
e que as redes e o zoom e os streamings
e tudo mais que acontece online
nos deixe assoberbadxs
e angustiadxs
e ao mesmo tempo entusiasmadxs
que agora eu use o x para não marcar o gênero
e que isso signifique um problema
na hora de ler em voz alta
e por isso seja melhor o "e"
e que antes uma regra deste blog
era não falar de escrita ou deste blog
mas isso mudou no final do ano passado
e agora já não tem mais volta
e que a sensação de que
não tem mais volta nem sempre é ruim
mas aplicada ao brasil de agora
seja extremamente triste
e que para não ficar triste
eu escreva sem parar
mensagens, posts, diários, listas
e também isto aqui
ou que usar a escrita para isso
talvez a banalize
mas entre a banalidade e a tristeza
eu prefiro a banalidade
e que seja difícil saber o que é banal
ou não e que seja preciso arriscar?
ou que uma amiga mande em um grupo
uma matéria de uma capivara
que aproveitou a praia vazia
e foi nadar no mar
e que minha amiga chame isso
de rolêzinho
e que meu último rolêzinho antes
da quarentena tenha sido
com minhas amigas no dia
internacional da mulher
e que isso pareça uma pré-história
e que de lá pra cá sofremos muito
com nossa penas e as dos outros
e então o que importa?
que talvez importe não parar
de se importar
ele também me explica
que está pensando
e brincando
ao mesmo tempo
f. usa a palavra
vulnerável
hoje ele veio
raramente falamos
de lembranças e menos
ainda de partos
mas desta vez é
isso, o meu, o nosso
falamos do parto de f.
o filho é o filho
quando se corta
o cordão nessa hora
mas e o homem
é uma dúvida que
eu tenho
esse homem que
me diz coisas cortantes
me acompanhou
no nascimento
e quem sabe depois
onde estaremos
fico à distância dele
quando vejo já estou
cortando os versos
no intervalo do sentido
ao invés de deixar
as palavras se separarem
onde elas não estão
em geral separadas
acontece que esse homem
continua vindo aqui
e falamos sobre partos
e sobre mortes
e ele me diz
o que minha lembrança
tinha escondido
sabe-se lá onde
porque naquele dia
ao contrário do que eu
gostava de contar aos
quatro ventos quando
ainda ventilavam
que foi tudo muito
tranquilo naquele dia
acontece que ele
me acompanhou
e só ele se lembra
do pavor que sentiu
porque eu quase
morri naquele dia
no parto de f.
e ele continua
falando sozinho
agora avidamente
alívio
f. vem até mim
e pergunta:
mãe, 12 x 60
é igual a 60 x 12?
ufa, ele suspira,
ainda bem
a. tem twitter
seu nome é vidin
todos os posts
são sobre animes
a não ser um
de 29/12/19
que diz
"adeus
tuca
sentiremos
sua falta"
f. tem falado
mais sozinho
os argumentos
vão e vêm
como um diálogo
ora veloz
ora pausado
não sei direito
o que ele diz
do outro lado
do quarto
da sala
do banheiro
da cozinha
mas conheço bem
essa necessidade
de se desdobrar
pra tentar continuar
ficções
tenho tido vontade
de escrever pra pessoas
mortas
comecei pela
minha avó
agora pensei
no barthes:
ah! se você
soubesse
é estranha
a sensação porque
não acredito
em nada
é uma ficção
mesmo
mas aí ontem
vi um vídeo
de um homem
voltando pra casa
num trem lotado
às 6 da tarde
e eu aqui trancada
com os meus
meninos
pensei que a gente
está mesmo
vivendo
num teatro
fingimos
acreditar
workers of the world
você vem assistir
à cerimônia do oscar
na minha casa
não digo não
quando você pede
não é mais a mesma
cena de vocês três
que eu gostava tanto
como espectadora
por momentos você
relaxa e ri como antes
ou quase porque sabemos
que a espera é tensa
quando o oscar vai
para "american factory"
você suspira
vitorioso
não fico com raiva
era previsível
o que nem eu
nem você esperávamos
era que os americanos
vencedores
agradecessem
citando o manifesto
comunista
sonhei que contava
para p. sobre o livro
ele estava usando
uma jaqueta jeans
azul-escura
que na realidade
é azul-clara
ou vice-versa
eu me aproximava
e me inclinava
e aproximava
a mão de onde
um dia esteve
a estrelinha
vermelha
(às vezes
quando ele vem
aqui ver os meninos
eu me aproximo
e o abraço antes
de que ele possa
reagir)
o sonho era
feliz eu acho
mas não tenho
certeza
glantz
mi abuela
es escritora
y le gustan
los cojines
residente permanente
acho engraçado
quando às vezes me perguntam
a vos te gusta vivir
en brasil?
a vida é brutal
diz meu amigo
citando francis bacon
só conseguimos
falar sobre isso
eu corto a conversa
pra dizer que você
aceitou vir comigo
pro méxico
planejamos mais uma
cidade no nosso mapa
contrariando essa vida
que nos leva pra onde
bem quer
enquanto isso
viajo atrás deles
morro de medo
busco sem ar
momentos felizes
porque nunca se sabe
digo a você
só o que é possível
à distância
falar pouco
me protege
mas não é só isso
a dor vive
em silêncio
e ela é minha
companheira
um lugar para ela
mãe
eu nunca imaginei que fosse
te dizer isso
nunca imaginei
a. tinha uma amiga
com a mesma inicial dele
para ela ele dizia
o que não dizia
para ninguém
e agora ele tem que
me dizer
o que imaginou
que nunca me diria
ela morreu
ela se matou
*
vamos enterrá-la
não é mais ela
diz a mãe
a. não é mais a.
ele segura a mão dela
antes de que fechem o caixão
ele passa a ponta dos dedos
numa fitinha de bonfim
vermelha
igual à que ele
leva no braço
*
a regra disto aqui
era não falar disto aqui
isto não é um diário
"é um livro que não acaba"
eu dizia
mas não vou mais
dizer
*
enquanto isso
caminhamos
pelo cemitério do araçá
e eu escrevo mentalmente
só porque
preciso acreditar
em alguma coisa
alguém
diz que ela está
em um lugar melhor
*
quando chegamos
nos perdemos
a. se lembra
do père lachaise
e diz que lá havia
um mapa
há cemitérios bonitos
que são lugares turísticos
para onde levei
meus meninos
já escrevi sobre isso
mas isto é diferente
é inimaginável
*
a regra disto aqui
era não escrever disto aqui
mas a vida não tem regra
*
eu nunca imaginei
que ele fosse viver
algo assim
perguntamos para um rapaz
onde fica o velório
ele indica o caminho
a. fica aliviado
não estamos passeando
estamos na dr. arnaldo
estamos em são paulo
a cidade deles
a vida deles
todas as vezes que passarmos
por aqui
vamos lembrar dela
do que imaginamos e
não imaginamos
para ela
*
ele segura a mão dela
depois me diz que sentiu
falta de uma pulseira
sua preferida
azul
mantemos uma conversa
entrecortada
pelas contas da pulseira
pelo que ele não pode
me dizer
nunca imaginamos
é a primeira morte
que vivemos juntos
é inimaginável
*
digo para ele
que podíamos
recuperar fotos
as músicas que ela ouvia
quem sabe
um álbum
é uma boa ideia
mãe
ele diz
estou em uma cidade
que mal conheço
vou a uma osteopata
é uma mulher bonita
leve
apresento a ela
meus lugares-comuns
a escoliose
a natação
as dores
tento explicar
em francês
que nada disso é novo
é sua fragilidade
ela resume
pede para eu deitar
interrompendo o silêncio
ela pergunta
há quanto tempo
estou viajando
20 dias
e quanto falta
para voltar?
20 dias
40 dias no total
sim, 40 dias
tenho vontade de perguntar
se ela acha muito
ela sabe que tenho
dois filhos
e um DIU
que tive dois partos vaginais
e tenho um namorado
nos estados unidos
é uma mulher leve
e firme
há sinais de que ela
também viajou
formas e cores
que não parecem dali
é provável que nunca mais
nos vejamos
eu vou ficar sem saber
se é muito
pós-perda
sempre comprar cadernos pequenos
nunca tirar cadernos completos de casa
pensar bem ao tirar um caderno de casa
pensar bem ao tirar qualquer coisa de casa
sempre olhar pra trás ao sair de algum lugar
com l.a.s.
cuando se cansa
de tanto querer
ella es tan clara
que ya no es
ninguna
três pês
a. me dizque detestou"bacurau"me dá seusmotivoseu me irritoele se irritaeu provoco:"seu pai já viu?"não é issoque eu queroperguntarele entendefica em silêncioda escolamanda mensagem:mãetava pensandoem "bacurau"conversei como pedrãovi de um jeitodiferente:"bacurau"não é bommas não é ruimdepois a genteconversaa. adorao professorde geografiame disseque as aulassão ótimasque ele sabeouvirtenho vontadede dizer a eleque é uma sorteque entre p.e euhaja um pedrão
conto para ela
do meu novo amor
a voz da experiência
me censura:
no te hagas ilusiones
tento traduzir
para o português
não me iludo
para variar
muito se perde
a começar
pelas ilusões
não digo à voz
da experiência
que não tenho
nada a perder
também não digo
que a vida é feita
de ilusões
fico na minha
me quedo en el molde
depois canto
para ela
um canção do roberto
em portunhol
oficina de escrita
ele diz que eu ainda
acredito no amor
não sei se ainda
é a palavra
que cabe na frase
mas tudo bem
também não sei
se a palavra acredito
deveria estar ali
não é fácil formar frases
com a palavra amor
ele escolhe a palavra
borboleta e eu digo
que é uma ótima palavra
k. escreve com ela
um texto em que conta
como na sua infância
catavam borboletas
que guardavam em potes
com pequenos buracos
para deixá-las respirar
baby
acordo com a palavra "baby" na boca
não sei se é você
ou a canção do caetano
“você precisa saber de mim”
fazia tempo que não lembrava
desse apelido
no sonho estou olhando para o passado
choro e uma amiga me consola
dizendo que minha pele
está muito bonita
quando você me perguntou
se o curso de cinema de a.
era marxista te chamei
pela primeira vez de "meu bem"
como faço com pessoas queridas
algumas próximas outras nem tanto:
"meu bem, o que isso quer dizer?"
eu te disse
você não soube responder
mikrokosmos
e. deu aulas de piano
para a., f. e p.
o primeiro foi a.
aos cinco anos
antes de f. nascer
quando f. fez cinco
foi a vez dele
no meio tempo
p. quis também
os meninos abandonaram
ele continuou até
a separação
um ano depois
liguei pra ela:
é a minha vez
afinei o piano
catei o “mikrokosmos”
do béla bartók
hoje ela me mostrou
um risco bem forte
que a. fez no livro
quando passou
do exercício 7
que achou chato e difícil
gostei de estar tocando
o exercício que ele
tocou
só hoje contei pra ela
que isso tem a ver
com um novo amor
fé
f. é do tipo
no creo en brujas
pero que las hay
las hay
a. prefere acreditar
que é tudo ficção:
"jesus morreu,
bora não comer carne,
é isso?"
o carro branco da sua família
foi alvejado por brasileiros
com atribuição constitucional
de zelar por vocês
por nós
no desabafo tomado
da forte emoção
pela perda do seu marido
você fez o diagnóstico correto
sob a mais aguda dor
foi capaz de lembrar
que disse ao evaldo
"amor, calma, é o quartel"
tudo bem
esqueço
que está tudo bem
que estou na paulista
que o plano cobre
que foi bem a tempo
que a febre baixou
que você ligou
que é assim mesmo
que a dor vai passar
que o médico sabe
que ele dormiu bem
que é só ter paciência
lembro
e assim mesmo eu choro
porque não está tudo bem
está tudo uma merda
eu
uma mulher
que escreve
delicadeza
ganhei uma caixa de bombons
de um aluno
coloquei no armário da cozinha
a. comeu todos
menos um
com p. m. r.
para começar a viagem
o porteiro que me diz:
la globalización nos mató
digo a ele meu nome
e ele me promete
que não vai esquecer
se eu não anoto esqueço
por isso desde que te conheci
anoto o que penso em te contar
para começar
uma mulher que diz:
y quién va a querer
ver una película brasileña?
eu quero ver um filme argentino
para te contar depois
que o pai da diretora
era gay e militante
comunista nos anos 70
que iam à disney
que ele morreu
caindo estupidamente
de um cavalo bravo
quero que você me diga
se isso é familiar para você
desde que te conheci
achei tudo muito familiar
como este bar da esquina
onde me acomodo agora
como se a viagem
fosse eterna
ninho
no ninho do urubu
onde um incêndio matou
nesta sexta-feira 8
dez atletas adolescentes
morava um dos mais belos sonhos
que se pode ter na vida:
ser jogador de futebol
minha mãe pergunta a si mesma
ou ao tempo
ou à xícara de café
que ela olha
sem olhar pra mim
por que ela não perguntou
certas coisas
pra sua mãe
por quê?
eu devolvo a ela à pergunta
minha agora
também
fungos
passo uma escovinha em cada folha
e a baba branca se agarra às cerdas
que mergulho em leite com açúcar
e volto a passar em cada folha
quero muito acreditar
que a doçura
vencerá
ano novo
e se de repente
a mesma inicial
for um novo amor?
vista para o mar
meu pai me conta rindo
que tem sonhado com bolsonaro
diz que o inconsciente está
tentando resolver o que
na realidade
não tem solução:
ontem sonhou que ele
escolhia uma ministra argentina
para cuidar de assuntos culturais
e dava a ela um gabinete muito pequeno
com vista para o mar
parecía mar del plata
e ri de novo
razón
a personagem do filme
diz que a vida
faz com a gente o que ela quer
k. concorda:
tiene razón
você me conta que está lendo
drieu la rochelle
drieu
de la rochelle
repito
você me diz
que é sem o "de"
pergunto por que
você diz que não se lembra
por que chegou a ele
eu me lembro vagamente
de quem ele é
quando chego em casa
procuro no google
vejo que ele se chama
pierre
e que foi um colaboracionista
durante a invasão alemã
lembro que foi amigo
do nosso aragon
o poeta comunista
que nos uniu
por alguns meses
aragon rompeu com drieu
como era de se esperar
comprei uma samambaia nova
e dei a ela o nome de matilde
a samambaia morreu
ela me lembrava os anos 80
que foi quando a gente se conheceu
que foi quando a ditadura acabou
tudo vira símbolo
ou alegoria
sinal dos tempos
aparente
de repente
ou nada de repente
com a brutalidade
do que ao aparecer
já estava lá
de repente
blasers pretos
e botas pretas
e cinto e calças
mais apertadas
de repente uma ordem
uma limpeza
só aparente
de repente
me alegram
piolhos
que a. prefira
a mochila rasgada
os chinelos desbotados
que não combine
nada com nada
que não esteja nem aí
para a aparência
porque p.
de repente
ou nada de repente
resolveu
aparentar
prioridade
enquanto espero
minha vez de falar
na mesa redonda
faço exercícios
para o períneo
os sonhos que são para ela
eu
faço
os meus
eu
tenho
dominique
agora os sonhos se dividem
entre os que são para mim
e os que são para ela
sua cartada final
continua sendo:
você está mal
informada
para pizarnik
depois de dias te lendo
sonhei com a minha mãe
a extrair da minha coxa
um pássaro morto
nao consigo me separar
do livro da chantal thomas
então o trouxe pra dormir comigo
ainda bem que não fiz o mesmo
com p.
a. adquiriu o hábito
de mandar mensagens
de whatsapp
para sua pediatra
ela me conta que
ele diz coisas como
“arder o pulmão”
“dor perto do coração”
e sugere que eu
deveria guardá-las
p. me conta que voltou
a estudar grego antigo
fico dias pensando sobre
o que isso significa
há muitos anos, lá atrás
lá no início
fizemos isso juntos
antes mesmo do início
na nossa pré-história
estudávamos grego
com um manual escrito
em alemão gótico
depois frequentamos
um grupo de estudo
num casarão em ruínas
em santa teresa
tudo isso nos divertia
e nos unia
ele então agora
voltou sozinho
a estudar grego antigo
não fui a única que
achou isso significativo
por telefone ele
me confessa:
“achei que você fosse
ficar com inveja”
escritos geográficos
artigos, entrevistas
projetos e textos publicados
em jornais, revistas, livros e internet
do prof. claudio ferreira terezo
geógrafo, autor
do novo dicionário de geografia
consultor ambiental do site terra
e colaborador da revista geografia
essencial para estudantes
e professores de geografia
e ciências afins
na praia
minhas amigas são minha praia
elas são borda, são espuma
são mar
meu mar
minhas amigas são o mar
que se recolhe e volta com tudo
são os restos que traz
a maré baixa
são o segredo do mar
e a falação da areia
são a alegria da onda
saltada a tempo
são o tempo da arrebentação
minhas amigas são
minha praia
nelas eu quero
morar
tu abuela
arreglando mis cosas encontré
un pequeño cartoncito en el cual
escribías a tu abuela del amor
que sentías por ella
del susto que te dió
porque había estado enferma
muy amorosa
muy delicada
emociona
frustração
em 1988
eu tinha a idade
que a. tem agora
meu pai decidiu me levar
a salvador onde até hoje
vai a trabalho
fomos até o galeão
mas não embarcamos
por causa de uma greve
quando a companhia aérea
ofereceu hospedagem àqueles
que não moravam no rio
meu pai prontamente
me explicou que a partir
de então esse era
o nosso caso
talvez ele tenha começado
a falar comigo na frente
de todos em espanhol
ou talvez seu sotaque
tenha bastado
para compor a cena
tomamos um ônibus
para o hotel othon
na avenida atlântica
tudo era divertido demais
para parecer errado
e afinal de contas
minha frustração merecia
ser compensada de algum modo
teríamos duas diárias
de frente pro mar
no dia seguinte
meu pai me deixou
em casa e levou
minha mãe pra dormir
com ele