25.12.19

um lugar para ela

mãe
eu nunca imaginei que fosse
te dizer isso
nunca imaginei
a. tinha uma amiga
com a mesma inicial dele
para ela ele dizia
o que não dizia
para ninguém
e agora ele tem que
me dizer
o que imaginou
que nunca me diria
ela morreu
ela se matou


*


vamos enterrá-la
não é mais ela
diz a mãe
a. não é mais a.
ele segura a mão dela
antes de que fechem o caixão
ele passa a ponta dos dedos
numa fitinha de bonfim
vermelha
igual à que ele
leva no braço


*


a regra disto aqui
era não falar disto aqui
isto não é um diário
"é um livro que não acaba"
eu dizia
mas não vou mais
dizer


*


enquanto isso
caminhamos
pelo cemitério do araçá
e eu escrevo mentalmente
só porque
preciso acreditar
em alguma coisa
alguém
diz que ela está
em um lugar melhor


*


quando chegamos
nos perdemos
a. se lembra
do père lachaise
e diz que lá havia
um mapa
há cemitérios bonitos
que são lugares turísticos
para onde levei
meus meninos
já escrevi sobre isso
mas isto é diferente
é inimaginável


*


a regra disto aqui
era não escrever disto aqui
mas a vida não tem regra


*


eu nunca imaginei
que ele fosse viver
algo assim
perguntamos para um rapaz
onde fica o velório
ele indica o caminho
a. fica aliviado
não estamos passeando
estamos na dr. arnaldo
estamos em são paulo
a cidade deles
a vida deles
todas as vezes que passarmos
por aqui
vamos lembrar dela
do que imaginamos e
não imaginamos
para ela


*


ele segura a mão dela
depois me diz que sentiu
falta de uma pulseira
sua preferida
azul
mantemos uma conversa
entrecortada
pelas contas da pulseira
pelo que ele não pode
me dizer
nunca imaginamos
é a primeira morte
que vivemos juntos
é inimaginável


*


digo para ele
que podíamos
recuperar fotos
as músicas que ela ouvia
quem sabe
um álbum
é uma boa ideia
mãe
ele diz